À nossa saúde!
De bom tom em cada brinde, vociferado com entoação firme. Pela nossa saúde!
Sussurros que ecoam na mente, raramente transbordantes dos limites de nós
próprios.
Findos dias de
convulsão, não se tratasse afinal do mais essencial direito e necessidade (a
saúde), pairam ainda alguns ecos de protesto de enfermeiros e médicos, os 2
maiores grupos que sustentam o Sistema Nacional de Saúde (entre tantos outros,
infelizmente ainda menos representados, como os TDT, Psicólogos entre outros).
Aos médicos
coube o ruído mais audível; e ruído nunca seria demais contra a transformação
da medicina de qualidade num jogo de mercenários. 2 dias de paralisação, ainda
assim insuficientes para que se perceba a verdadeira dimensão do atentado
projectado pelos arquitectos que desenham o nosso triste futuro em linhas
grosseiras: substituir a contratação das instituições por empresas fornecedoras
de mercenários low-cost, compara-se a contratar para mecânico qualquer um que
saiba atestar o esguicho do pára-brisas. Arriscamo-nos a que o único critério
de calibração da medicina seja o número de consultas/hora, adjuvados pelo
mínimo de recursos possível.
Ergueu-se
igualmente a voz contra o atentado à carreira médica; olvida-se com frequência
que uma grande base do trabalho desenvolvido especialmente nos Hospitais, se
baseia na estrutura da carreira médica, se suporta nos internos de
especialidade. Detonar os fundamentos deste princípio é amputar de qualidade e
atenção os cuidados aos utentes. E troca-se a riqueza da formação pela poupança
de tostões, que em nada se reflecte naquilo que é o crónico “buraco financeiro”
da Saúde.
A culpa não
pode, no entanto, ser depositada exclusivamente no paupérrimo poder político
que atenta, governo após governo, contra o sistema nacional de saúde. A culpa é
também dos médicos, que nas empresas de prestação de serviços viram, até dada
altura, uma oportunidade de ganhar pontuais pequenas fortunas; que com estas empresas
promoveram assimetrias gritantes entre colegas de profissão. Estas suas
invenções, que lhes permitiram exercer, em alguns casos, em múltiplos Hospitais
do sistema público e privado, geraram diferenças remuneratórias atrozes entre
colegas; lado a lado, em tantos dias caóticos em bancos de Urgências, muitos
houveram a ganhar o dobro de outros colegas com vínculo à instituição
hospitalar. É tempo de silenciar o monstro, não só agora que ele pretende
deglutir a essência da arte médica, mas também para terminar com as diferenças
entre colegas. Diferenças, essas, apenas aquelas conquistadas pelo mérito e
progressão na carreira.
Luta-se por
uma contratação directa das instituições, promovendo estabilidade, promovendo
continuidade e melhoria de cuidados. O ruído, esse, tem mais eco pelo papel
social que ainda desempenha a bata branca imaculada, mas só surtirá efeito se
entoado em uníssono.
Aos
enfermeiros coube apenas o murmúrio: uma vigília de 50 pessoas, não chegou para
mais do que um ténue prurido auditivo à porta do Ministério da Saúde. É certo
que a público vieram as vozes da classe; Bastonário, Presidente da Secção
Regional do Sul e representantes sindicais criticaram a remuneração irrisória,
mais, humilhante, oferecida a enfermeiros. No entanto as mesmas vozes já
permaneceram em silêncio demasiado tempo em situações semelhantes. Continuam os
enfermeiros à espera que os Moita Flores ou Sousa Tavares da vida se pronunciem
para seguirem na boleia mediática. Continuam os enfermeiros a necessitar do
elogio pontual de quem não confia na sua própria arte e ciência.
Meses antes,
já no Hospital Rovisco Pais se pagavam 5€/hora, já o Hospital de Loures
contratava recém-licenciados em vínculo precário a 700 e 800€ mensais, já no
Centro Hospitalar de Trás-os-Montes não se pagavam horas de qualidade, já no
Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental se exigia a devolução de valores
astronómicos aos próprios profissionais, já no Hospital de S. João se despede
uma enfermeira-chefe pelas suas ligações sindicais, e perante tudo isto reinou
o silêncio.
Defende-se um
valor mínimo de 7€/hora para exercer enfermagem, um valor que não obriga sequer
a compensação fixa pelo trabalho nocturno ou em feriados e fins-de-semana. 7€
para ajudar a nascer, para suavizar a dor na hora da morte, para lutar pela
vida, para substituir em cada pequeno gesto impossibilitado de ser feito
autonomamente. 7€ para viver a cada hora com a responsabilidade de não errar,
para viver com o perigo eminente de acidentes no local de trabalho, para ser
acarinhado, para ser também insultado. 7€ para jovens de 21 ou 22 anos
conviverem com a morte diariamente, para pais de família deixarem as suas
famílias durante a noite, para não as acompanharam nas consoadas, para ouvirem
os seus filhos reclamar da pouca presença. 7€ para remunerar uma licenciatura,
para remunerar um esforço diário de diferenciação, de especialização, para
remunerar um gosto pelo cuidar que excede, na maioria das ocasiões, as suas
necessidades pessoais, pois não ficam doentes para cuidar, mas ficam enfermeiros
sem hora de refeição.
Aos
enfermeiros o murmúrio é o único ruído, pouco ambicioso, pouco voltado para a
melhoria dos cuidados de saúde, quando de si dependem a maioria dos cuidados
(esquecem ser 60 a 70% da força de trabalho). Exigir 7€ é o mesmo que reclamar
dos 4€, é conformar-se ao medíocre, é esquecer que aos enfermeiros já foi, pelo
menos, oferecido mais; ainda o é, para os resistentes que pertencem à função
pública, aqueles que, na sua maioria, permanecem em silêncio. Tal como
continuam a permanecer em surdina os recém-licenciados, os que iniciam a sua
carreira, sem a consciência de que aceitar tudo apenas com a perspectiva de
adquirir experiência é nivelar demasiado por baixo a profissão, a ciência, a
arte de enfermagem. Mudos ficam os responsáveis da classe permitindo aumento de
vagas no Ensino Superior para a Licenciatura em Enfermagem esquecendo os mais
de 30% de desempregados na classe (haja alegria nos países oportunistas que
ganham enfermeiros sem um cêntimo investido na sua formação)
O povo, em
geral, ignora as razões de queixas. Vê apenas o resultado final, ou seja, com
maior ou menor dificuldade, são cuidados, são tratados, são ajudados. A greve é
para eles um dia sem consultas, não percebendo que em perigo está toda a
gratuitidade, segurança e qualidade de um Sistema Nacional de Saúde.
O povo
desconfia, não percebe a contestação, quando são necessários cortes, assim o
dita o dogma governamental, exigindo esforço a todos.
Não percebe, o
povo, aqueles a quem tão corajosamente servem médicos, enfermeiros e todos os
profissionais de saúde, que o gasto excessivo do SNS não está nas despesas com
os seus profissionais: enfermeiros a 4€/hora, TDT a 3€/hora e médicos internos
de especialidade a preço de quase gratuitidade não são a base de um problema de
má gestão governamental. 20€ de taxa moderadora num
hospital pagam o trabalho prestado durante 1 hora a um utente, em termos de
pessoal envolvido, pelo menos, não esquecendo a contribuição fiscal dos
contribuintes.
Ao povo
caberia a maior razão para gritar, para clamar, para entoar vigorosamente.
Afinal mais do que condições salariais e de trabalho para profissionais, está
em causa toda a integridade de um sistema de saúde público. Em momentos de
aflição não há seguradora ou clínica privada, com as suas fardas reluzentes e
edifícios de assinatura arquitetónica que ponha à sua frente as necessidades de
quem cuida. Colocar as necessidades dos doentes em primeiro lugar faz o serviço
público, que funciona devido à abnegação e paixão de quem nele trabalha,
defende e acredita.
Os dedos
acusadores multiplicam-se, mas por cada dedo apontado pelo menos 3 dedos se
voltam para nós. Médicos e enfermeiros, uns pela arrogância cultural de quem
achou nunca ser beliscado, outros pela subserviência e conceptualização de que
todos podem beliscar; a todos cabe a culpa, pelas remunerações irrisórias, pela
desvalorização de quem garante os cuidados de saúde. Povo, porque não recorda o
nome do enfermeiro que o cuidou, confunde o nome do médico assistente apenas
por não ter cabelo grisalho e apelidar-se de Professor Doutor, não percebe que
é do esforço e empenho de técnicos de cardiopneumologia, técnicos de
imagiologia, assistentes operacionais entre tantos outros que recupera o que de
mais precioso temos: a saúde.
À nossa saúde!
Um brinde que poderemos fazer quando se valorizar a especialização nos cuidados
médicos, quando as instituições trouxerem segurança aos seus profissionais com
vínculos e vencimentos condignos, quando os enfermeiros viram reconhecidas as
milhentas intervenções que fazem diariamente, esquecendo-se de si próprios em
prol do cuidar com qualidade, quando em cada dia de doença ou sofrimento de
alguém o sofrimento não seja determinado pelo profissional que manda a empresa
privada, mas sim determinado pelos mais competentes para o cuidar.
À nossa saúde!
Um brinde quando todos os profissionais de saúde desceram de pedestais ou
tirarem os olhos do chão e perceberem que defender o SNS é uma luta de todos,
conseguida pela luta de cada grupo profissional. Afinal atrás de um
profissional de saúde está uma pessoa, que um dia também adoece.
À nossa saúde!
Um brinde ao ainda longínquo dia em que desistimos da passividade enquanto cada
direito, cada migalha de liberdade e justiça nos são, lentamente, roubados.
Tiago
Pinheiro