segunda-feira, 16 de julho de 2012

À nossa (saúde)!


À nossa saúde! De bom tom em cada brinde, vociferado com entoação firme. Pela nossa saúde! Sussurros que ecoam na mente, raramente transbordantes dos limites de nós próprios.
Findos dias de convulsão, não se tratasse afinal do mais essencial direito e necessidade (a saúde), pairam ainda alguns ecos de protesto de enfermeiros e médicos, os 2 maiores grupos que sustentam o Sistema Nacional de Saúde (entre tantos outros, infelizmente ainda menos representados, como os TDT, Psicólogos entre outros).
Aos médicos coube o ruído mais audível; e ruído nunca seria demais contra a transformação da medicina de qualidade num jogo de mercenários. 2 dias de paralisação, ainda assim insuficientes para que se perceba a verdadeira dimensão do atentado projectado pelos arquitectos que desenham o nosso triste futuro em linhas grosseiras: substituir a contratação das instituições por empresas fornecedoras de mercenários low-cost, compara-se a contratar para mecânico qualquer um que saiba atestar o esguicho do pára-brisas. Arriscamo-nos a que o único critério de calibração da medicina seja o número de consultas/hora, adjuvados pelo mínimo de recursos possível.
Ergueu-se igualmente a voz contra o atentado à carreira médica; olvida-se com frequência que uma grande base do trabalho desenvolvido especialmente nos Hospitais, se baseia na estrutura da carreira médica, se suporta nos internos de especialidade. Detonar os fundamentos deste princípio é amputar de qualidade e atenção os cuidados aos utentes. E troca-se a riqueza da formação pela poupança de tostões, que em nada se reflecte naquilo que é o crónico “buraco financeiro” da Saúde.
A culpa não pode, no entanto, ser depositada exclusivamente no paupérrimo poder político que atenta, governo após governo, contra o sistema nacional de saúde. A culpa é também dos médicos, que nas empresas de prestação de serviços viram, até dada altura, uma oportunidade de ganhar pontuais pequenas fortunas; que com estas empresas promoveram assimetrias gritantes entre colegas de profissão. Estas suas invenções, que lhes permitiram exercer, em alguns casos, em múltiplos Hospitais do sistema público e privado, geraram diferenças remuneratórias atrozes entre colegas; lado a lado, em tantos dias caóticos em bancos de Urgências, muitos houveram a ganhar o dobro de outros colegas com vínculo à instituição hospitalar. É tempo de silenciar o monstro, não só agora que ele pretende deglutir a essência da arte médica, mas também para terminar com as diferenças entre colegas. Diferenças, essas, apenas aquelas conquistadas pelo mérito e progressão na carreira.
Luta-se por uma contratação directa das instituições, promovendo estabilidade, promovendo continuidade e melhoria de cuidados. O ruído, esse, tem mais eco pelo papel social que ainda desempenha a bata branca imaculada, mas só surtirá efeito se entoado em uníssono.
                Aos enfermeiros coube apenas o murmúrio: uma vigília de 50 pessoas, não chegou para mais do que um ténue prurido auditivo à porta do Ministério da Saúde. É certo que a público vieram as vozes da classe; Bastonário, Presidente da Secção Regional do Sul e representantes sindicais criticaram a remuneração irrisória, mais, humilhante, oferecida a enfermeiros. No entanto as mesmas vozes já permaneceram em silêncio demasiado tempo em situações semelhantes. Continuam os enfermeiros à espera que os Moita Flores ou Sousa Tavares da vida se pronunciem para seguirem na boleia mediática. Continuam os enfermeiros a necessitar do elogio pontual de quem não confia na sua própria arte e ciência.
Meses antes, já no Hospital Rovisco Pais se pagavam 5€/hora, já o Hospital de Loures contratava recém-licenciados em vínculo precário a 700 e 800€ mensais, já no Centro Hospitalar de Trás-os-Montes não se pagavam horas de qualidade, já no Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental se exigia a devolução de valores astronómicos aos próprios profissionais, já no Hospital de S. João se despede uma enfermeira-chefe pelas suas ligações sindicais, e perante tudo isto reinou o silêncio.
Defende-se um valor mínimo de 7€/hora para exercer enfermagem, um valor que não obriga sequer a compensação fixa pelo trabalho nocturno ou em feriados e fins-de-semana. 7€ para ajudar a nascer, para suavizar a dor na hora da morte, para lutar pela vida, para substituir em cada pequeno gesto impossibilitado de ser feito autonomamente. 7€ para viver a cada hora com a responsabilidade de não errar, para viver com o perigo eminente de acidentes no local de trabalho, para ser acarinhado, para ser também insultado. 7€ para jovens de 21 ou 22 anos conviverem com a morte diariamente, para pais de família deixarem as suas famílias durante a noite, para não as acompanharam nas consoadas, para ouvirem os seus filhos reclamar da pouca presença. 7€ para remunerar uma licenciatura, para remunerar um esforço diário de diferenciação, de especialização, para remunerar um gosto pelo cuidar que excede, na maioria das ocasiões, as suas necessidades pessoais, pois não ficam doentes para cuidar, mas ficam enfermeiros sem hora de refeição.
Aos enfermeiros o murmúrio é o único ruído, pouco ambicioso, pouco voltado para a melhoria dos cuidados de saúde, quando de si dependem a maioria dos cuidados (esquecem ser 60 a 70% da força de trabalho). Exigir 7€ é o mesmo que reclamar dos 4€, é conformar-se ao medíocre, é esquecer que aos enfermeiros já foi, pelo menos, oferecido mais; ainda o é, para os resistentes que pertencem à função pública, aqueles que, na sua maioria, permanecem em silêncio. Tal como continuam a permanecer em surdina os recém-licenciados, os que iniciam a sua carreira, sem a consciência de que aceitar tudo apenas com a perspectiva de adquirir experiência é nivelar demasiado por baixo a profissão, a ciência, a arte de enfermagem. Mudos ficam os responsáveis da classe permitindo aumento de vagas no Ensino Superior para a Licenciatura em Enfermagem esquecendo os mais de 30% de desempregados na classe (haja alegria nos países oportunistas que ganham enfermeiros sem um cêntimo investido na sua formação)
O povo, em geral, ignora as razões de queixas. Vê apenas o resultado final, ou seja, com maior ou menor dificuldade, são cuidados, são tratados, são ajudados. A greve é para eles um dia sem consultas, não percebendo que em perigo está toda a gratuitidade, segurança e qualidade de um Sistema Nacional de Saúde.
O povo desconfia, não percebe a contestação, quando são necessários cortes, assim o dita o dogma governamental, exigindo esforço a todos.
Não percebe, o povo, aqueles a quem tão corajosamente servem médicos, enfermeiros e todos os profissionais de saúde, que o gasto excessivo do SNS não está nas despesas com os seus profissionais: enfermeiros a 4€/hora, TDT a 3€/hora e médicos internos de especialidade a preço de quase gratuitidade não são a base de um problema de má gestão governamental. 20€ de taxa moderadora num hospital pagam o trabalho prestado durante 1 hora a um utente, em termos de pessoal envolvido, pelo menos, não esquecendo a contribuição fiscal dos contribuintes.
Ao povo caberia a maior razão para gritar, para clamar, para entoar vigorosamente. Afinal mais do que condições salariais e de trabalho para profissionais, está em causa toda a integridade de um sistema de saúde público. Em momentos de aflição não há seguradora ou clínica privada, com as suas fardas reluzentes e edifícios de assinatura arquitetónica que ponha à sua frente as necessidades de quem cuida. Colocar as necessidades dos doentes em primeiro lugar faz o serviço público, que funciona devido à abnegação e paixão de quem nele trabalha, defende e acredita.
Os dedos acusadores multiplicam-se, mas por cada dedo apontado pelo menos 3 dedos se voltam para nós. Médicos e enfermeiros, uns pela arrogância cultural de quem achou nunca ser beliscado, outros pela subserviência e conceptualização de que todos podem beliscar; a todos cabe a culpa, pelas remunerações irrisórias, pela desvalorização de quem garante os cuidados de saúde. Povo, porque não recorda o nome do enfermeiro que o cuidou, confunde o nome do médico assistente apenas por não ter cabelo grisalho e apelidar-se de Professor Doutor, não percebe que é do esforço e empenho de técnicos de cardiopneumologia, técnicos de imagiologia, assistentes operacionais entre tantos outros que recupera o que de mais precioso temos: a saúde.
À nossa saúde! Um brinde que poderemos fazer quando se valorizar a especialização nos cuidados médicos, quando as instituições trouxerem segurança aos seus profissionais com vínculos e vencimentos condignos, quando os enfermeiros viram reconhecidas as milhentas intervenções que fazem diariamente, esquecendo-se de si próprios em prol do cuidar com qualidade, quando em cada dia de doença ou sofrimento de alguém o sofrimento não seja determinado pelo profissional que manda a empresa privada, mas sim determinado pelos mais competentes para o cuidar.
À nossa saúde! Um brinde quando todos os profissionais de saúde desceram de pedestais ou tirarem os olhos do chão e perceberem que defender o SNS é uma luta de todos, conseguida pela luta de cada grupo profissional. Afinal atrás de um profissional de saúde está uma pessoa, que um dia também adoece.
À nossa saúde! Um brinde ao ainda longínquo dia em que desistimos da passividade enquanto cada direito, cada migalha de liberdade e justiça nos são, lentamente, roubados.

Tiago Pinheiro

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