terça-feira, 3 de janeiro de 2012

A Saúde em Saldos

A saúde em Portugal vive uma situação única; incredulamente verificam-se saldos ao longo de todos os minutos do ano. Poupa-se na dignidade destes mesmo cuidados, e o seu preço é, sem dúvida um achado.
Sendo que 70% da mão de obra, que "mete verdadeiramente a mão à obra" neste nosso sistema de saúde, são enfermeiros, concluimos que o preço da Saúde sai barato a quem o paga. Estes 70% não recebem como licenciados apesar de o serem, não ganham horas nocturnas apesar das fazerem, não merecem horas extraordinárias apesar de as cumprirem. Estes 70% especializam-se à sua custa, formam os seus alunos sem remuneração, prestam-se à excelência sem recompensa ou incentivo. Estes 70% são avaliados, criticados, julgamos, recompensados apenas nos sorrisos ou no ar sereno daqueles que cuidam.
Este Outlet de boa vontade quase gratuita persiste desde sempre. Ainda assim tenta-se cortar aqui na despesa. No fundo é como se a opção de cortar no preço fosse sobre aquela camisola de custo modesto, deixando imaculado o preço da camisola do costureiro famoso. Faz sentido? Faz! Afinal estes 70% raramente se pronunciam.
O que os Oulets têm igualmente de vantajoso é a possibilidade de adquirir qualidade, inacessível fora desta modalidade. Ora vejamos, encontrar um profissional que tenha o dom da técnica, o dom de compreender o que executa, de saber cuidar de todas as dimensões da pessoa, doente ou saudável, não se adivinha tarefa fácil. Encontrá-lo ao preço "da chuva" é ainda mais dificil. Mas a tarefa tem-se facilitado nestes últimos anos, muito à custa das "fábricas de enfermeiros" que substituiram as escolas do antigamente. Públicos, privados, indecisos, todos tem culpa de terem um dia farejado aqui negócio.
O preço do saldo actualmente para a enfermagem cifra-se em cerca de 900 e picos euros, com vinculo precário e sem protecção de acidentes de trabalho, por 40h semanais. Nada mau, pensarão alguns. Muito mau para quem tem a responsabilidade de cuidar, para quem tem um dever de dar constantemente o seu melhor de dia, de noite, no Natal, no Verão, em cada minuto, em cada segundo; para quem tem nas mãos a vida de outro.
O silêncio entre os enfermeiros impera; a sua Ordem, o seu Sindicato consentem. Uns, a Ordem não discute salários, aparentemente não discute também dignidade da profissão, pois aqui não se fala de justiça salarial fala-se de dignidade. Outros, o Sindicato, consideraram que os enfermeiros não deveriam ganhar como licenciados até todos o serem (já o somos, há muito!).
Intrigante mesmo é a opção governamental, transversal aos últimos 3/4 mandatos: para poupar na saúde retira-se aos enfermeiros. Estes cuidados a preço de saldo são o alvo de esquadros orçamentais cegos. E as poupanças são minimas. E não haja engano: poupar nos enfermeiros é poupar na dignidade dos cuidados.
Que dignidade espera 40 pessoas internadas entregues a 2 enfermeiros? Que dignidade para pessoas com 1 enfermeiro num Centro de Saúde? Que dignidade para uma espera de 9h numa urgência quando o número de enfermeiros é reduzido?
Para administradores de Centros Hospitalares, para gestores, para Administrações Regionais de Saúde, para médicos de banco que dormem toda a noite, para eles sim há dinheiro! E aqui os cortes não se fazem. Corta-se nos saldos, procura-se que seja gratuito, não para dar um novo brilho a este SNS mas para que não escasseiem verbas para o desperdicio "habitual".
Portugal tem saúde com qualidade a preço de saldos. Ainda assim opta-se pela mediocridade. E a opção começa no silêncio daqueles que são oferecidos em saldo.
Silenciosos os enfermeiros abdiquem das pausas de refeição, da dignidade e segurança no seu local de trabalho, de serem reconhecidos por tudo aquilo que são. Silenciosos, resignamo-nos a aceitar uma responsabilidade imensa, sem ser remunerados como seria justo, sendo espizinhados por classes profissionais emergentes, sendo colocados na linha da frente daquilo que não aceito: um SNS sem dignidade, sem respeito.
Faça-se a matemática dos tolos. Um episódio de urgência custa à ARS cerca de 300€, fora análises e exames. Se for atendido pelo enfermeiro da triagem, por um médico e por um enfermeiro de um Balcão, gastam-se, em cuidados de enfermagem, um máximo de 15€. Vantajoso hein? Há quem ganhe mais a dormir.
Melhor, a esses niguém corta, talvez porque tenham o dom da reinvidicação quando acordados. Somos o que aceitamos, seremos o que continuarmos a aceitar. Quando deixar de se poupar na dignidade do SNS ai faltaram 15 000 enfermeiros, mais todos aqueles que deveriam passar a fazer todo o pré-hospitalar. Até lá, e até para o demonstrar, a luta está nas nossas mãos.

1 comentário:

  1. subscrevo inteiramente o que diz o indignado Ricardo e, com certeza milhares de enfermeiros, mas o que me parece é que a nossa classe é mais a classe dos resignados e não dos indignados
    Querem nos fazer crer que já somos uns felizardos por termos emprego e há muita gente que acredita

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