quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Doença em horário de expediente

A doença reveste-se de inúmeros aspectos; perturba-se o quotidiano, o equilíbrio familiar, o bem-estar pessoal. Sonhos, projectos, ambições, tudo se detém num fôlego expectante, exalado apenas, sob o mais sincero suspiro, quando se retoma a melhor saúde. Retomar a saúde é retomar as batalhas diárias, sem ela é enfrentar uma batalha de armas de fogo com não mais do que um frágil galho.
Estar doente não é uma escolha, é um prémio amargo da lotaria do dia-a-dia na qual todos estamos inscritos. Resolver a doença é sim uma prioridade, toldada pela ansiedade, pelo receio, pela necessidade de estar o melhor possível.
A doença tem tanto de impacto como de imprevisível. O momento em que surge nunca é, nunca será, conveniente. E recuperar, cuidar, ser cuidado são dos mais elementares instintos conhecidos ao Homem. Curar e ser curado acompanham a humanidade desde sempre, de mãos dadas tornam-se intrínsecos à sua evolução desde sempre.
Numa altura em que os meios de cuidar, de recuperar, tanto evoluíram, discutimos agora o tempo de adoecer. Por mais evoluções que conquistemos, por mais ferramentas para “consertar” a saúde, estas serão inúteis quando actualmente se coloca um timing para adoecer. Inventamos Ressonâncias Magnéticas e Tomografias, mas só as realizamos durante a semana; planeamos cirurgias mas só as executamos até às 16h00; elaboramos medicamentos mas só os vendemos com facilidade durante o dia; analisamos exaustivamente todos os tipos de patologia, mas só colocamos a cura ao alcance de quem tenha meios financeiros para tal.
Criamos centros de saúde mas fechamos-lhes as portas quando deles precisamos. Criamos hospitais e esvaziamo-los da capacidade de tratar dignamente. Criamos sistemas de saúde para que todos tenham a possibilidade de estar bem e negligenciamos a igualmente que todos merecem. No fundo criamos as soluções, com igual afinco com que delineamos os problemas.
Estar doente não é uma opção. Estar doente, não deveria, no entanto, significar estar sem opções. Não deveria significar ter portas para bater que nunca se abrem. Guardando lá dentro o que procuramos: a saúde.
A facilidade de ser cuidado diminui na proporção exacta ao tempo disponível. O trabalhador comum que sai de casa na alvorada e regressa com o sol já posto, não pode estar doente; não deve, dizem os patrões, não ouse, exige o Estado. As portas da cura, aquelas que se adequam, essas estão sempre abertas, mas apenas nas alturas erradas. Tosse, vómitos, um cansaço maior, um estado ansioso ou depressivo, esses podem ocorrer das 9h00 às 12h00. Já depois do almoço reserva-se o direito para a varicela, diarreia ou dores de garganta. Um corrupio de gabinetes vazios em centros de saúde até as 17h00. Depois, bem… depois já é fora de hora de estar doente.
Sobra o Hospital, desnudado de dignidade por cortes cegas, desmembrado do valor imenso dos profissionais que ali lutam, que vão sendo cada vez menos. Sobra o Hospital onde cada vez mais se demarca a injustiça de que é o dinheiro que compra cuidados, de que todos os cêntimos de impostos estão longe de ser úteis quando precisamos: quando estamos doentes.
Sobra o Hospital onde todos vociferam não podermos ir, sem nos deixar, no entanto, alternativas. Sobra o Hospital para o imediato, já para o estudo, o seguimento, a recuperação, remetem novamente para a saúde em hora de expediente. E todos se tornam impacientes; afinal esperar significa perder um dia de trabalho, significa estar imóvel num mundo em que a exigência move-se rápido de mais, esquecendo quem está doente.
Reforça-se acto após acto, dia após dia, a ideia da doença em horário de expediente. Não há corte que não fustigue o trabalho nocturno, o trabalho aos fins-de-semana. A semana é, parece, suficientemente comprida para que haja uma debandada dos empregos para as portas dos centros de saúde em busca da resposta necessária, merecida.
Fecham-se hospitais, fecham-se centros de saúde, reforçam-se taxas discriminatórias, perdão, moderadoras. Fecham-se portas sem que hajam janelas. A escassa lufada de ar fresco no bafio apodrecido que é a saúde em Portugal, essa entra apenas em horário de expediente. Asfixia-se quem está doente, asfixia-se a sua dignidade.
Ser cuidado é um direito que não se extingue, que não esmorece. Alimentam-no corajosos enfermeiros, médicos e outros profissionais, que, em condições cada vez mais precárias, se disponibilizam para o por em prática a cada segundo do dia. Atentam contra ele os decisores deste país, que do conforto do seu lar e da sua riqueza determinam que estar doente é um luxo, uma escolha patética, uma futilidade.
Dos seus lábios saem criticas a quem usa e abusa de Hospitais, esquecendo que depois das 17h00 não há centros de saúde, que para chegar a um hospital é preciso percorrer 50 ou 100km, que a maioria da população desespera por um médico de família, que para fazer uma Ressonância se esperam meses, que para ser operado se esperam anos, tudo porque o sistema de saúde é um farol preguiçoso. Alumia o caminho da doença com luz ténue, durante 7 ou 8h de um dia que tem 24h.
A dignidade de cada um fica em perigo, a dignidade, temo, já nem a concedem em todo o horário de expediente. Acende-se demasiado intermitente o farol da cura, tão intermitente que ninguém sabe mais onde procurar. E definha a saúde, definha a dignidade, definha a democracia.

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